terça-feira, 8 de março de 2011

Heidegger nos fala da Lexicografia

Num diálogo com o colega lexicógrafo Luiz Antonio Barros, refletia sobre o estatuto da linguagem tal qual consignada em antologias e dicionários. O colega insistia em pensar um dicionário como um registro sistemático das palavras como se tal documento fosse um “banco” no qual se creditam todos os vocábulos de uma língua, e que as palavras estariam ali, denotadas, com o significado que efetivamente têm. Eu, por minha vez, concordava com isso, contudo entendia que palavras nascem do uso e na espontaneidade com o qual o discurso enquanto linguagem cotidiana engendra suas significações, daí palavras só terem significados no contexto de mundo do qual elas sempre afloram. Houve discordância quanto a minha posição.


Nova polêmica se estabeleceu quando, na conversa, afirmei que grandes lexicógrafos como Antenor Nascentes, Silveira Bueno, Houaiss, Aurélio e Aulete, embora incontestáveis mestres dicionaristas, seriam cegos para o caráter essencialmente linguístico dos vocábulos consignados em suas obras monumentais. Quer dizer: que um lexicógrafo nunca coloca em questão a maneira com que a linguagem de sedimenta em língua falada, escrita, vernaculizada. Novamente faltou o consenso.

Em casa, em uma dessas coincidências inexplicáveis, encontrei na preleção “Lógica – A pergunta pela essência da linguagem”, do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) as seguintes considerações sobre a linguagem “conservada” nos dicionários:



“Nós dissemos na última aula que a linguagem estava capturada e conservada no dicionário. É certo que um dicionário é algo relativo à linguagem, nomeadamente uma imensidão de fragmentos isolados e pedaços de língua. Nós dizemos dicionário (em alemão Wörterbuch = livro de palavras), estão aí os vocábulos (Wörter) e não ditos (Worte), nada falado. Estes vocábulos não estão, porém, isolados não estão aí de modo caótico, eles estão ordenados segundo a ordem do alfabeto que, em relação à ordem das palavras faladas, é sem dúvida inteiramente diferente. Esta soma dos vocábulos no dicionário pertence, num sentido determinado, à linguagem.

Ora, se nós admitimos que esta soma de vocábulos pertence à existência da linguagem, qual é a sua extensão? Estarão todos os vocábulos no dicionário? Ou será que a língua é delimitável por um determinado número de vocábulos? Ou será que a língua está em constante formação e volta, por outro lado, a rejeitar ditos e vocábulos que desaparecem depois subitamente? Que estado da língua deve ser de todo em todo compreendido num dicionário? Não será um dicionário como um ossário num cemitério, onde os ossos e os restos mortais de homens há muito desaparecidos estão empilhados muito cuidadosamente, de tal modo que, através desta estratificação, toda a ruína se manifesta?”

(HEIDEGGER, Martin. Lógica – A pergunta pela essência da linguagem. Trad. Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008)



É claro que a autoridade de Heidegger, nada define em meu debate com o colega interessado por lexicografia. Mas nos dá elementos para debater sobre o tema instigante.

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